Clarice, uma surpresa1

 

Quando a mim me foi pedido para fazer uma pequena homenagem aos cem anos de nascimento de Clarice Lispector, minha patronesse na cadeira 39 deste sodalício, pensei: que tarefa hercúlea!

O que dizer desta mulher exuberante, instigante, mágica, intensa, tanto na vida como em sua obra?! Dizer desta escritora que perpassou por todos os gêneros literários: artigos jornalísticos, crônicas, correspondências, novelas, romances, poesias belíssimas (para alguns, desconhecidas), literatura infantil, além da pintura... em apenas dez minutos?!

Pensei: não me aterei a falar de sua biografia, que ela nasceu na Ucrânia, em 8 de dezembro de 1920; chegou ao Brasil, aos 2 anos de idade, mais precisamente, em Alagoas, logo mudando-se com a família para Recife, Pernambuco; e que, após a morte da mãe, na adolescência, a família escolhe a cidade do Rio de Janeiro em busca de novas oportunidades... Não falarei desta jovem glamorosa, elegante (cuja presença jamais deixara de ser notada!); jovem avançada para os anos 20/30, que já aos 13 anos tem um conto publicado; aos 23 anos, já se formara em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em uma época em que raras eram as mulheres que ingressavam em um curso superior, sendo a única mulher de sua turma; que já trabalhava em redação escrevendo suas crônicas publicadas

pelo Jornal do Brasil, o que lhe possibilitava manter-se financeiramente...

Esta jovem desbravadora que, aos 24 anos, teve seu primeiro romance, Perto do coração selvagem, publicado e agraciado com o prêmio Graça Aranha...

Que nesta época casou-se com Maury Gurgel, diplomata brasileiro, seu colega de turma na faculdade de Direito, abandonando o auge de sua carreira de escritora, para dedicar- se ao casamento e aos filhos (porém, nunca deixando de sua paixão maior: escrever...)

Não falarei da mulher que durante a Segunda Guerra Mundial serviu à Cruz Vermelha em Nápoles, Itália; que falava várias línguas; morou em muitos países da Europa e América; que morreu jovem, aos 57 anos, de câncer de mama, encerrando uma carreira brilhante, deixando um legado de mais de cem obras, considerando suas crônicas e poesias...

Não contarei que, em homenagem aos Cem Anos de Clarice Lispector, a Editora Rocco reeditou suas obras com ilustrações de suas telas (quadros) na capa dos livros...

MAS... falarei, sim, sobre um questionamento que me acompanha desde a FLIP – Feira Literária Internacional de Parati, RJ, de 2005, em homenagem a Clarice Lispector –, quando, em uma mesa redonda, da qual participava Marina Colassanti (sua amiga pessoal), esta disse que a literatura de Clarice era “impecável”, só se eximindo de uma coisa: era uma literatura alienada, não engajada à situação política e social vigente, no auge da Ditadura de 64 e do famoso AI-5...

Talvez fosse o impacto do momento...

Fiquei com esta indagação e, ao me aprofundar em leituras clariceanas, inclusive recentemente, consegui amadurecer esse levantamento feito por Marina Colassanti.

Talvez, se comparada a grandes autores regionalistas como um Graciliano Ramos, um Monteiro Lobato, uma Rachel de Queirós, um Guimarães Rosa, poder-se-ia pensar que ela não era engajada aos problemas de ordem social e econômica como eram esses escritores.

Entendo Clarice como uma mulher atemporal, avançadíssima para a sua era. A sua relação com o mundo, a sua relação “estrangeira” é sempre de estranheza, surpresa, do mesmo modo como um estrangeiro olha para um lugar novo, de não-pertencimento, desencaixada tanto das relações sociais e usuais, como das relações amorosas de seus personagens, na maioria, protagonistas femininas. A ela coube levantar uma série de denúncias encontradas na sociedade hodierna, inclusive neste momento pelo qual estamos passando, em que todas as mazelas humanas estão vindo à tona de forma tão politizada e exacerbada.

Desde seu primeiro romance, Clarice centra sua atenção no registro de labirintos da intimidade de suas personagens, atenta a detalhes patentes na vida cotidiana: como a Joana Perto do coração selvagem; como a Catarina nos Laços de família com a mãe; como nas expressões complexas do “Amor” experimentadas por Ana, figura feminina conformada com a rotina diária de sua vida; como o ódio (ódio?) d’ “O búfalo”, retratado lindamente na mulher do casaco marrom; como A paixão segundo a (escultora) G.H. que, ao encontrar uma barata enorme no quarto da empregada, reflete o retrato de uma sociedade falsa, repleta de preconceitos e nojo frente aos subalternos.

Temas como ética, moral (como não se lembrar do conto “O crime do professor de matemática”?), ordem social, judaísmo, religiosidade, antissemitismo... A futilidade d’A bela e a fera ou A ferida grande demais na ‘socialite’ Carla. Como ser alienada, e criar uma Macabea, e sua hora de estrela, retrato mais amplo da mulher pobre e marginalizada, migrante nordestina, oca, sofrida, rebaixada pela sua feiura e fraqueza, mas intensa em emoções?...

Como pode uma pessoa alienada levantar tantas reflexões através de inúmeras situações e personagens representados em sua escrita?

 

Se por um lado escreve crônicas leves e agradáveis de se ler, por outro há textos que revelam, reacendem verdades veladas, até então abafadas...

Mas isso não faz dela uma melancólica, como muitos a costumam taxar. Pelo contrário, ela descortina o mundo interior de todos nós; mostra as sensações como realmente o são, e não como gostaríamos que fossem ou queremos que sejam. Clarice fala do vivo, e o vivo causa incômodo – mas este incômodo nos faz conhecer a nós mesmos! E isto incomoda!

Sua escritura situa-se numa confluência de paradigmas em que a narradora tece, entre(is)tece e destece, e põe o leitor em tensão entre ele e si mesmo. E isto não basta?

Assim, essa mulher visionária, atemporal é reveladora de denúncias e situações que vivemos e sofremos até hoje. A discriminação racial, a questão migratória, condutas de comportamentos éticos e morais, a violência racial e sexual, a violência contra a mulher, a falta de visibilidade, do descaso, inúmeras aflições que nos atingem ainda hoje.

Não poderia deixar de fazer aqui uma analogia ao nosso grande escritor, autodidata, o bruxo do Cosme Velho, Machado de Assis. Mulato, epilético e vítima de preconceito, outro mestre de nossa literatura que, mesmo vivendo em época de transição do Império para a República, jamais abarcou diretamente esse tema. No entanto, nas entrelinhas deixava transparente esses assuntos. É só pensarmos em “O alienista” e seus personagens Simão Bacamarte e Porfírio... São exemplos extemporais?

Esta foi a surpresa com que me deparei nestes tempos: o outro lado desta Clarice, não alienada, mas, por todos os exemplos dados acima e instigada pela pergunta feita há quinze anos, esta surpresa a mim me foi muito grata!

Passei a enxergar uma nova Clarice: vibrante, engajada, atuante em todas estas questões que nos atormentam hoje.

Como reagiria Clarice em tempos de pandemia? Acho que superaria/suportaria todo esse temor/terror/pavor escrevendo, escrevendo, escrevendo, entendendo-se e entendendo a nós mesmos...

Quero encerrar deixando aqui uma sugestão aos prezados concorrentes e vencedores de todas as faixas etárias, especialmente, parabenizando aos vencedores dizendo: escrevam, tentem, escrevam sempre, não abandonem este nobre ato de dividir com o semelhante o que sentem e vivem.

Termino com excerto de uma das mais belas declarações de amor feitas à língua portuguesa e escrita por ela que se encontra no livro A descoberta do mundo:

 

“Esta é uma confissão de amor: amo a língua portuguesa!

Ela não é fácil... Não é maleável. E, como não foi profundamente trabalhada pelo pensamento, a sua tendência é a de não ter sutilezas e de reagir, às vezes, com um verdadeiro pontapé contra os que temerariamente ousam transformá-la numa linguagem de sentimento e de alerteza. E de amor.

A língua portuguesa é um verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo para quem escreve tirando das coisas e das pessoas a primeira capa de superficialidade.

Às vezes, ela reage diante de um pensamento mais complicado. Às vezes, se assusta com o imprevisível de uma frase.

Eu gosto de manejá-la como gostava de estar montada num cavalo e guiá-lo pelas rédeas, às vezes, lentamente, às vezes, a galope.

Eu queria que a língua portuguesa chegasse ao máximo na minha mão. E este desejo todos os que escrevem têm. Um Camões e outros iguais não bastaram para nos dar para sempre uma herança de língua já feita. Todos nós que escrevemos estamos fazendo do “túmulo do pensamento” alguma coisa que lhe dê vida.

Essas dificuldades, nós temos. Mas não falei do encantamento de lidar com uma língua que não foi aprofundada.

O que recebi de herança não me chega.

Se eu fosse muda, e também não pudesse escrever, e me perguntassem a que língua eu queria pertencer, eu diria: “Inglês, porque é preciso e belo”.

Mas como não nasci muda e pude escrever, tornou-se absolutamente claro para mim que eu queria mesmo era escrever em português.

Eu até queria não ter aprendido outras línguas, para que a minha abordagem do português fosse virgem e límpida.

 

Maria José Gargantini Moreira da Silva Cadeira 39

Patronesse Clarice Lispector

 

1 Discurso proferido na Premiação do XXVIII Concurso Literário de Poesia e Prosa desta Academia, em 10 de setembro de 2020.