RAÍZES DO NOSSO CARNAVAL

 

Acadêmica Beatriz V. C. Castilho Pinto

Patrono Paulo Setúbal, Cadeira 31

 

 

Palestra proferida no âmbito da Serpentina Literária, evento lítero-musical promovido pela Academia de Letras de São João da Boa Vista em 23.02.20191

 

 

Ao contrário do que possa parecer, falar de carnaval é coisa séria, na medida em que perpassa questões religiosas, políticas e culturais – tanto que o tema é objeto de estudos na área da filosofia2, da linguística, da história, da antropologia, da sociologia e, também, da literatura. Na literatura brasileira, é tema recorrente desde o século XIX, tendo sido abordado pelos mais representativos dos nossos autores: Martins Pena e Machado de Assis, no século XIX; Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Manuel Bandeira, nas décadas de 1920-30; e, mais recentemente, por Jorge Amado, Rubem Braga e Lígia Fagundes Telles, no belíssimo conto Antes do baile verde, dentre tantos outros escritores.

Ainda diferentemente do que se possa pensar, o carnaval, marca identitária do Brasil, não é uma criação brasileira. Ele tem origem em civilizações muito distantes da nossa, tanto no tempo quanto no espaço, e seus festejos são herdados de crenças e costumes de vários povos. Assim, falar do carnaval é fazer uma viagem no tempo e no espaço.

Nossa viagem começa no Egito, 4.000 anos antes de Cristo, quando grandes celebrações populares festejavam as divindades agrárias, com as pessoas dançando em torno de fogueira e comemorando a primavera. O povo participava com procissões e oferendas, músicas e danças, num misto de devoção e euforia coletiva, prestando homenagem a essas divindades. Na festa ao boi Ápis, por exemplo, os egípcios pintavam um boi branco com vários símbolos e cores, e o seguiam o pelas ruas, com pessoas fantasiadas ou mascaradas e em grande devassidão, até finalmente afogá-lo no rio Nilo.

Também na Mesopotâmia há registros de festas em louvor a deuses agrícolas.

Dando um salto no tempo e passando à Grécia do século VI a.C., encontram-se as festas dionisíacas – celebrações religiosas em louvor a Dionysos, deus do vinho, dos excessos, do êxtase e, também, do teatro. As dionisíacas são, pois, festividades sagradas.

Por volta de 550 a.C., ocorriam em Atenas cinco festivais dionisíacos, distribuídos ao longo do ano. As festividades eram regadas por farta bebida, e até mesmo crianças de três anos de idade estavam autorizadas a beber. Embaladas pelo êxtase dionisíaco em danças e muita licenciosidade, inclusive sexual, as pessoas muitas vezes se ocultavam sob fantasias e máscaras. Dentre as festas dionisíacas, uma, ocorrida em março, celebrava a primavera; outra festejava a colheita da uva, tradição que se mantém até hoje nas festas da vindima; outra ainda, a dionisíaca urbana, promovia concursos de peças de comédia e tragédia (Aristófanes venceu vários), sendo esse o berço do teatro grego. A festa da primavera tinha como ápice a união carnal de Dionysos com a esposa do arconte rei, o que não era considerado como devassidão, mas como um ritual que celebrava a união sagrada entre os homens e os deuses, presenteando a todas as mulheres e à terra com o dom da fertilidade. Esparramadas ao longo do ano, as dionisíacas celebravam o ciclo vital da terra e a produção agrícola.

Um elemento fundamental nesses eventos é a participação de mulheres, escravos e estrangeiros. Nessas festas, eles podiam gozar de liberdades que normalmente lhes eram interditadas, pois não eram considerados cidadãos. Além disso, os concursos e competições – como: quem bebe mais, quem apresenta melhor declamação ou representação – serviam para sociabilizar as pessoas e suavizar os conflitos internos dentro da polis grega.

Assim, além do seu caráter religioso, as dionisíacas têm um importante papel político na sociedade grega – um papel agregador, conferindo a Dionysos o status de divindade cívica. Era o Estado, de mãos dadas com a Religião, calibrando válvulas de escape necessárias ao funcionamento social.

É dessa festa, desse caldeirão cultural – onde religião e transgressão se confundem, sob o permissivo das bebidas e máscaras – que nasce o que mais tarde receberia o nome de “carnaval”. Enfim, naquele universo pagão, o caminho que leva o homem a atingir o sagrado não é a ascese, mas o comportamento transgressor.

A tradição dos festejos se expandiu para o Império Romano, que passou a cultuar o deus do vinho, agora sob o nome de Baco. Originalmente, o culto era realizado de forma esporádica, secreta e com a presença apenas de mulheres – as bacantes, sacerdotisas que se entregavam a práticas de orgia religiosa. Vale observar que as bacantes eram senhoras de origem patrícia, escolhidas entre as de mais ilibada reputação, pois tais práticas não eram vistas como uma imoralidade, mas como um ato de comunhão com a divindade.

Com o tempo, as bacanais foram perdendo as características iniciais: tornaram-se simples orgias desprovidas de qualquer sentido religioso, assim como se passaram a admitir homens e se tornaram frequentes, sendo realizadas até cinco vezes ao mês, num bosque próximo a Roma, aberto aos “iniciados”. Passaram, inclusive, a ser local de crimes e desordens sociais, com histórias de envenenamento e desaparecimento de pessoas, conforme relata o historiador romano Tito Lívio. Em 86 a.C., o Senado proíbe as bacanais3. O inquérito levado ao Senado romano indicou que passava de 7.000 o número de iniciados – a maioria, mulheres. As bacanais foram proibidas em todo o Império Romano, inclusive sob pena de morte, excetuadas algumas situações excepcionais, por autorização do Senado. No entanto, apesar desse controle, os devotos continuavam celebrando os ritos em bacanais mais ou menos clandestinas. Além disso, festas também louvavam Saturno, deus da agricultura, sendo realizadas por ocasião do solstício de inverno, por volta do dia 25 de dezembro – a festa foi posteriormente apropriada pela Igreja Católica para comemorar o nascimento de Cristo4.

Dando agora um salto para a Idade Média, observa-se que nem mesmo a moral austera do Cristianismo conseguiu pôr fim à folia. A Igreja Católica, para sobreviver, teve que aceitar a prática daqueles costumes pagãos já secularmente arraigados. Espertamente, adequou-os ao seu calendário litúrgico, definindo que os três dias de folia deviam preceder o período da Quaresma, marcada pela abstinência, penitência e espiritualidade. Assim as festividades acabaram sendo permitidas como “válvula de escape” que antecedia as restrições quaresmais, complementando-se num ciclo de pecado e perdão.

Instituir um período de Quaresma tem duas importantes implicações. Primeiro, aponta que a Igreja medieval havia implicitamente incorporado os festejos carnavalescos ao seu calendário litúrgico, fazendo-os anteceder a Quaresma. Segundo, faz surgir a palavra “carnaval”, possivelmente5 derivada de “carne vale”, expressão que significa “adeus à carne”, “privação da carne”. Assim, ao contrário do que muitas pessoas imaginam, etimologicamente a palavra “carnaval” se refere não aos prazeres da carne, mas à sua privação; alude, não à folia, mas à quaresma. E aqui cabe uma observação de caráter filológico: na história das línguas, não é raro que uma palavra mude completamente de sentido, como aconteceu com o termo “embora”, que, originariamente, significava “em boa hora”.

Voltando ao carnaval medieval, as ruas se enchiam de gente divertindo-se com brincadeiras e tudo aquilo que não deveriam fazer durante o resto do ano. Para tanto, as pessoas usavam máscaras e fantasias, sendo as mais comuns as de urso, homem selvagem e homem vestido de mulher. O carnaval medieval era chamado “Festa dos Loucos”, pois o folião perdia a sua identidade cristã e voltava aos velhos costumes pagãos em que tudo passava a ser permitido. Também membros do baixo clero se entregavam a várias licenciosidades: padres e clérigos usavam máscaras de monstro durante o ofício; dançavam no coro vestidos de mulher, lacaio ou menestrel; cantavam canções licenciosas; aspergiam “incenso” feito de sola de sapatos velhos.

Com a chegada da Idade Moderna, a “Festa dos Loucos” ganha diferentes contornos na Europa. Na França, o carnaval se concentra em Paris e Nice. Em Veneza, a tradição de carnaval de máscaras cresce a partir do século XVI, com a nobreza mascarada para misturar- se ao povo. A festa, que já durou quase seis meses, hoje tem duração de dezoito dias, com bailes em salões e desfiles pela cidade, com as pessoas em trajes do século XVIII. Em Portugal, o carnaval tem o formato de entrudo, brincadeira em que as pessoas jogam água, limão de cheiro6, farinha, ovos e até detritos umas nas outras.

No Brasil, a história do carnaval começa cedo: em 1553, quando os portugueses trazem para Pernambuco a tradição do entrudo. A tradição permanece durante todo o período colonial, com três dias de entrudo, antecedendo a Quaresma. Dele participavam senhores e escravos, padres e militares, podendo a hierarquia ser afrouxada mediante permissão. O entrudo foi retratado na pintura e na literatura, sendo célebres a Prancha 33 de Debret (1823) e suas anotações, bem como o conto “Um dia de entrudo”, de Machado de Assis (1874) – assim como também o carnaval é tema recorrente na literatura brasileira.

Paulatinamente, o entrudo foi passando a ser considerado violento, com pessoas arremessadas em fontes públicas e até mortas. Alguns intelectuais, entre eles Olavo Bilac, fizeram campanha contra o entrudo, identificando-o com o atraso e o regime colonial. Em 1854 o entrudo foi proibido – mas não acabou, apenas passou a acontecer em menor escala: o próprio imperador D. Pedro II teria brincado o entrudo, conforme o jornal A Gazetinha, de 1882.

A partir de então, o entrudo cedeu lugar aos blocos, cordões e ranchos carnavalescos, estes, por sua vez, oriundos dos ranchos de reis, que eram procissão religiosa. As ruas eram fechadas para a festa, que passou a adotar o confete, a serpentina e o personagem Zé Pereira (por volta de 1850), português bigodudo portando um bumbo grande e muito barulhento.

Embora a origem da figura seja controversa, é certo que o cortejo do Zé Pereira ainda não era acompanhado por música – esta só seria criada em torno de 1870 – e as pessoas simplesmente o acompanhavam aos gritos de “Viva o Zé Pereira”.

E por falar em entrudo e Zé Pereira, mais de cem anos mais tarde, em 1974, eles serão reverenciados na música Boi da cara preta, de Zuzuca, interpretada por Jair Rodrigues. [Segue- se apresentação musical]

Boi, boi, boi

Boi da cara preta Pega essa criança

Que tem medo de careta.

 

Eu não chorei, porque não sei chorar

Nem reclamei, porque não sou de reclamar Só exaltei, Eneida, amor e fantasia

Cantei entrudo, Zé Pereira, o rei da folia. [...]

Ao lado desse carnaval popular, a burguesia criou sociedades carnavalescas7 e também passou a promover bailes de salão nos moldes europeus, com fantasias de pierrô, colombina, arlequim, rei momo e até mesmo baile de máscaras, tudo vendido nas lojas da Rua do Ouvidor. Registros apontam que o primeiro baile máscaras ocorreu em 1840, promovido pelo Hotel Itália, localizado na atual Praça Tiradentes, no Rio. O carnaval brasileiro inaugurava uma nova fase: carnaval da elite versus carnaval popular.

Em 1899, a maestrina Chiquinha Gonzaga compõe Ô abre alas, para o bloco Rosas de Ouro, do Rio. É considerada a primeira música de carnaval, pois até então os foliões saíam às ruas em cordões ou blocos desprovidos de acompanhamento musical. A música: tal é a grande contribuição brasileira para o carnaval, aqui reinventado. [Segue-se apresentação musical]

Já no início do século XX, o advento do automóvel faz nascer outra modalidade de manifestação carnavalesca: o corso, desfile de carros enfeitados, que dariam origem aos futuros carros alegóricos das atuais escolas de samba, ocupados por pessoas fantasiadas. Esse é o carnaval da elite, europeizado, que tinha como palco, no Rio, a Avenida Central e, em São Paulo, a recém-inaugurada Avenida Paulista dos barões do café. Mário de Andrade mostra magistralmente a cena em Amar, verbo intransitivo.

De outro lado, os cordões, compostos por pessoas mais humildes, como ex-escravos e imigrantes, tinham lugar na Praça XI, e eram o reino do samba, então mal visto pela elite. Porvolta de 1930, começam a se formar as primeiras escolas de samba8, com ritmos e passos herdados da tradição africana.

Paralelamente, o rádio, recém-criado no Brasil, exerce papel fundamental na divulgação das marchinhas, que logo caíram no gosto popular e fundaram o repertório clássico do nosso carnaval, retratado neste pot pourri: [Segue-se apresentação musical]

Mamãe eu quero, 1939, Carmem Miranda, Jararaca e Vicente Paiva

O teu cabelo não nega, 1932, Lamartine Babo

Alá-lá-ô, 1939, Haroldo Lobo

Cidade Maravilhosa, 1934, André Filho Jardineira,1938, Benedito Lacerda e Humberto Porto Aurora, 1941, Mário Lago.

 

De lá para cá, a festa foi agregando novos elementos e novas formas de expressão artística, incorporando música, dança, artes cênicas, artes plásticas, indumentária e recursos tecnológicos. De um lado, o desfile das escolas de samba transformou-se num grande espetáculo para ser visto (e consumido). De outro lado, mais recentemente, o carnaval saiu do ambiente fechado dos clubes e apropriou-se das ruas, tomando-as não como palco, mas como espaço de vivência.

Assim, percorrendo 6.000 anos de história, vimos como os cultos pagãos a divindades agrícolas de Egito, Grécia e Roma, sobreviveram no carnaval medieval, endossado este pela Igreja Católica como desforra prévia às privações da Quaresma. Momentos de transgressão e liberdade respondem às necessidades humanas, nem que para isso seja preciso envolvê-los sob uma aura sacra, ou sob uma fantasia ou máscara. Momentos de transgressão respondem também a uma necessidade política, na medida em que simulam homogeneizar as diferenças sociais, tanto na Grécia antiga quanto nas sociedades contemporâneas. Note-se bem: apenas simulam atenuar tais diferenças, que, na verdade, tornam-se mais palpáveis quando se observa a existência de um carnaval do povo, em contraste com o carnaval da elite. Assim oscilando entre o divino e o humano, o pagão e o cristão, o popular e o burguês, a permissão e a proibição, o carnaval foi se reinventando ao longo do tempo.

Finalizando, nada melhor para ilustrar a interpenetração sagrado-profano do que esta marchinha de carnaval, que foi inspirada na cadência da música das pastoras que desfilavam em procissão religiosa, no Dia de Reis: a marcha-rancho As pastorinhas, de Braguinha e Noel

Rosa, composta em 1934 e ligeiramente reformulada pelo primeiro em 1937. [Segue-se apresentação musical]

 

i Pesquisa musical realizada pelas acadêmicas Silvia Ferrante e Vania Noronha. Apresentação musical por ambas e, também, pelas acadêmicas Carmem Lia Romano, Maria Cecília Malheiro e Wilges Bruscato.

ii Um clássico da área é o estudo do filósofo russo Bakhtin acerca da carnavalização na obra do escritor renascentista francês Rabelais, entendida como um deboche frente à hierarquia e aos lugares de poder. Trata-se do livro A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais.

iii O decreto, inscrito em placa de bronze, foi encontrado no século XVII no sul da Itália. Hoje se encontra no Museu de História da Arte em Viena.

iv A respeito, ver “Saturnália, a origem do Natal”. In: http://obviousmag.org/archives/2007/12/saturnalia.html. 

v Menor número de estudos aponta a etimologia carrum navale (carro naval), barco alegórico puxado por animais, utilizado pelos romanos na abertura de alguns festejos, como as Saturnais.

vi Limão de cheiro: artefato de cera, em formato de limão, contendo água perfumada, geralmente com canela. Ver a descrição de Debret, in: https://ensinarhistoriajoelza.com.br/carnaval-de-debret/.

vii Também tinham finalidade filantrópica e política, envolvendo-se na causa abolicionista.

viii A primeira escola de samba, de 1928, é a “Deixa falar”, fundada por Ismael Silva. Nunca desfilou como escola de samba. A propósito, ver:  https://extra.globo.com/noticias/carnaval/80-anos-de-desfile/primeira-escola-da-historia-deixa-falar-nunca-desfilou-como-escola-de-samba-3703805.html.